A experiência de uma corredora olímpica no Trail Running
Kara Goucher é atleta olímpica em longa distância. Medalhista de prata nos 10.000 metros no Mundial de Atletismo de 2007, ela defendeu os Estados Unidos nas Olimpíadas de Beijing (2008) e Londres (2012).
Em artigo publicado na Outside, a atleta fala da sua primeira experiência nas trilhas, mais especificamente na Leadville Trail Marathon, onde conquistou a 5ª colocação .”Respeitável,” escreveu o autor Martin Fritz Huber, “mas não com a performance dominante que os corredores de rua de elite estivessem esperando de uma mulher que corre meia-maratona em 66 minutos”.
Ele ainda alerta para o fato de Goucher estar com 40 anos e não ter o mesmo desempenho da juventude, mas que as corridas em trilhas favorecem os corredores com mais experiência, lembrando que Magda Boulet (também ex-atleta olímpica) venceu a Western States 100 Endurance Run em 2015 com 41 anos.
“Sem dúvida foi a coisa mais difícil que fiz em minha vida”, Goucher escreveu no Twitter após a corrida em que a doença de altitude a fez vomitar diversas vezes e onde, no dia seguinte, seu joelho parecia estar abrigando um alien. (Este ano a Leadville Marathon chegou a 3.500 metros de altitude)
Without a doubt, the hardest thing I’ve ever done in my life. Lots of dark moments today, thank you fellow athletes and spectators for getting me through. Massive respect not just for the amazing winners today but for everyone. That was tough as 🤬! #leadvilletrailmarathon pic.twitter.com/160VSG2gvD
— Kara Goucher (@karagoucher) 15 de junho de 2019
Leia abaixo a entrevista completa
OUTSIDE: Como foi a experiência em sua primeira corrida trail?
GOUCHER: Honestamente, eu fui uma idiota. Estou com 40 anos, mas corri como tivesse 10. Eu sabia que as primeiras 6 milhas eram subida e que na média geral ficar no ritmo entre 9 e 10 minutos por milha normalmente te coloca no pódio. Queria chegar na marca dos 10K mais ou menos entre 62 e 65 minutos… e eu cheguei com 51 minutos. E fui competitiva demais. Lembro de pensar que aquelas mulheres estavam rápidas, mas eu queria mantê-las no visual e talvez quando chegasse na marca de 18 milhas poderia ultrapassá-las. E isso não aconteceria, mesmo se eu não tivesse saído tão forte. Elas eram muito melhores que eu. Mas eu sinto que poderia ter tido uma experiência muito diferente, se não tivesse sido uma idiota no começo. Fiz todo aquele esforço e quanto chegou na grande subida de verdade, lembro de estar sentindo a maior dor de toda a minha vida – muito mais que dar à luz – e então olhei para o meu Garmin e marcava 11.6 milhas. Pensei, meu Deus, não sei se vou conseguir terminar.
Zach Miller, campeão da CCC em 2015, uma vez descreveu a diferença entre a corrida em asfalto e em trilha como dirigir um carro automático e um manual. Agora que você experimentou o mundo das trilhas, poderia comparar as duas?
Acho que são esportes totalmente diferentes. Lembro, na marca das oito milhas, de alguns homens andando na minha frente e eu pensei “fracos”, e passei correndo. E todos eles me passaram no final. Não pude tirar vantagem nas descidas porque estava totalmente acabada. Acho que é uma curva de aprendizado difícil. É duro vir do asfalto onde você chega no limite e apenas continua correndo – onde você treina para um certo ritmo que consegue manter por duas horas e meia. Esse é um tipo de pensamento difícil de se livrar quando isso é o que você fez toda a vida. É um pensamento que aprendi que não vai funcionar na trilha. Você precisa respeitar o terreno e o percurso.
Você acha que é fácil para quem vem da estrada subestimar o quanto as condições extremas podem contribuir para o desafio de algumas corridas trail? Você mora em Bolder, portanto não está totalmente desacostumada com altitude.
Absolutamente. Fiquei assustada o tempo todo. Eu queria me desafiar totalmente, mas mesmo com toda a minha inocência e meu respeito por todos ao meu redor, eu subestimei muito. Nos últimos dias fiquei pensando nas maiores dores que já senti em uma corrida. As outras corridas que vieram na minha mente foram a minha primeira meia maratona, onde eu realmente não sabia o que estava fazendo e onde as últimas três milhas foram bastante difíceis. Eu terminei com 66m57s, mas fiquei mal por pelo menos 6 horas depois. Pensei na (maratona) de Nova York em 2008, onde tive uma fadiga que nunca tinha sentido antes. Mas essa corrida foi muito mais difícil. Não consigo descrever. Eu queria apenas encostar na beira da estrada e imaginr alguém vindo de nocautear e então eu acordasse magicamente na cama. Terrível.
A última vez que publicamos um artigo comparando o corredores de elite do asfalto com os trail runners, muitos leitores responderam que é como maçã e laranja – as duas disciplinas são tão diferentes que é perda de tempo tentar compará-las. Você concorda?
Me pergunte daqui um ano. Acho que pode existir um cruzamento entre elas. Desi [Linden] é uma pessoa que me vem à mente. Ela é uma corredora muito paciente e está sempre focada em fazer sua própria corrida e não se preocupa no que acontece ao redor. Acredito que ela pode fazer uma transição de muito sucesso porque ela não seria tão idiota quanto eu fui – tentar correr contra pessoas que nunca havia corrido antes. Mas acho que concordo, possivelmente por ter subestimado a dificuldade do esporte. Talvez um trail runner não consiga chegar no limite e mantém o ritmo de 5:30 sempre. Mas gostaria que os corredores de asfalto soubessem que eles são atletas legítimos. Talvez eles não possam correr muito rápido no asfalto – ou talvez possam, não sei – mas o que podem fazer é incrível.
Em termos de treino que você fez para a Leadville, o quanto foi similar ao treino para uma maratona de asfalto? E quanto diferente?
Decidi fazer deixar de lado corridas baseadas em ritmo. Acabei fazendo muitas repetições em subidas de uma milha. Doze milhas divididas em uma subida íngreme de uma milha e descida leve, ou vice-versa. E fiz muitas corridas em trilha. Porque quando corro, não olho para os meus pés. Estou sempre olhando para frente. E agora haveria pedras em todo lugar, mesmo sabendo que a Leadville, no geral, tem um percurso confortável para os pés.
Para os atletas de elite há maior incentivo financeiro nas corridas de asfalto e pista. (Os principais eventos no cenário ultra, como UTMB e Western States por exemplo, oferecem pouco ou nenhum prêmio em dinheiro.) Você acha que isso pode mudar agora que o ultra running está tendo maior visibilidade?
Eu sou totalmente nova nesse mercado, mas uma das coisas que me impressionou no final de semana foi a comunidade. Eu não teria terminado sem as pessoas à minha volta naquele dia. Muitas pessoas pararam e andaram comigo, ou correram meia milha comigo e depois seguiram. É um sentimento totalmente diferente. Com certeza existe espaço para investir dinheiro na comunidade. Diria que é menos importante a velocidade que você está e sim, completar a prova. E talvez essa seja uma das razões de não haver premiação grande em dinheiro. Quer dizer, aqueles que estavam na frente voaram – e as pessoas vibraram por elas. Mas elas vibravam da mesma maneira para aqueles que chegavam próximo ao horário limite. É difícil para quem tem as pistas como experiência imaginar que não importa a velocidade que você corre. Mas acredito que seja mais um sentimento de grupo. É mais sobre o esforço coletivo e uma celebração coletiva.
Há pessoas que temem que o elemento de comunidade está sendo ameaçado pela contínua profissionalização do esporte, que também incita o doping. Por outro lado, alguns fãs se perguntam se algum dia o trail running pode se tornar um esporte olímpico. O que acha desse debate?
Eu acho que provavelmente já existem pessoas se dopando no ultrarunning. Acho irreal achar que só porque não há premiação em dinheiro que as pessoas não vão burlar o sistema. As pessoas burlam o sistema por menos coisas que uma corrida. Então acho que tornar o esporte olímpico não vai necessariamente aumentar o doping. Acho que torná-lo um esporte olímpico seria incrível. Estive participando de cross-country nas Olimpíadas e agora, tendo vivido um pouco dessa vida de corridas, acho que seria um evento muito legal. Acho que é uma daquelas coisas que até você experimentar um pouco de dor e sofrimento – e aliás, eu corri apenas uma maratona e não uma ultra – você não consegue imaginar o que esses atletas fazem. Acho que seria incrível se eles pudessem participar de um grande evento. Mas não ficaria muito preocupada com o aumento do doping com o aumento de testes fora de competição sendo implementadas agora.
Acha que fará uma outra corrida em trilha no futuro próximo?
Se você me perguntasse no sábado, provavelmente diria ‘de jeito nenhum’. Mas com o passar dos dias, fiquei cada vez mais interessada. Comecei a pesquisar outras maratonas em trilhas e até mesmo provas de 50 milhas. Estarei de volta com certeza.
Artigo original da Outside com autoria de Martin Fritz Huber.