É difícil enxergar diferente, até porque não conheço todas as provas, mas sem dúvida essa é a prova, que carrega o maior glamour, possivelmente a que possui a maior estrutura e visibilidade, a mais bajulada dentro do universo do trail running pelos atletas, assim como pela imprensa especializada.

Foi minha quarta vez em Chamonix e a primeira para encarar possivelmente o maior desafio como corredor de montanha: percorrer os 171 km do Ultra Trail du Mont-Blanc e, por mais que haja planejamento (isso não pode faltar nunca), as coisas nem sempre acontecem como gostaríamos.

+ Veja mais: os brasileiros finishers do UTMB 2019

Planejamento?

De forma bem resumida, partimos do Brasil, com a semana toda planejada (rs), perfeito né!

  • Segunda feira compras no mercado para casa e um rápido passeio no centrinho
  • Terça-feira, dia de conhecer o Lac Blanc ou Lac Bleu. A segunda opção de caminhada seria o Plan de L’Aiguille;
  • Quarta-feira, dia tenso haja vista a abertura da feira. Isso mesmo, a famosa feirinha de marcas e produtos;
  • Quinta-feira, dia de fazer as últimas compras, acompanhar os alunos na OCC, manter o foco na alimentação, não pular as refeições (rs), hidratar bem ao longo do dia, relaxar dentro do possível, meditar e ir dormir cedo. (parecia tudo fácil);
  • já na sexta-feira, dia de prova, tudo pronto (rs), momento de relaxar ao máximo, seguir todo planejamento alimentar, fazer duas meditações no decorrer do dia, ficar longe da confusão da cidade, lojinhas, feirinhas, promoções de equipamentos (kkk).

Perfeito o planejamento, estava definitivamente pronto para largar. Doce ilusão… Talvez isso se aplique aos atletas profissionais, que carregam consigo uma equipe para ajudá-los (de todas as formas), que conseguem chegar com dias de antecedência, fazer o reconhecimento do local da prova e no dia “D”, não se preocupar com nada (ou quase nada) e conseguir largar nos seus 100%. Mas vale aquela máxima, vamu com que temos!!!

Antes de mergulhar de cabeça na prova, gostaria de recomendar um lugar maravilhoso para conhecer, sugerido por uma francesa: Lac Cornu.

Partindo do Planpraz (Brevent), existe uma trilha sensacional (muitas placas indicativas) e ao final um lago maravilhoso formado pelo degelo das montanhas. Lógico que mergulhamos! Embora a água estivesse gélida, o momento era propício e convidativo. Observem que o planejamento de terça-feira foi completamente alterado (rs), isso é Chamonix!

O grande dia do UTMB

Chegou o grande dia. Consegui seguir com o planejado dentro do possível e 1h30 antes da largada eu estava pronto para sair de casa. Bummmm, caiu aquela chuva. Putz, pensei …. largar molhado não estava na minha programação.

Fiquei em pé na varanda, olhando e olhando a chuva e o relógio. 30 minutos depois ela parou, hora de correr para a largada.

Ao chegar o entorno estava completamente entupido. Imagine 2.500 pessoas em pé, exprimidas lado a lado. Não tinha muito o que fazer, apenas relaxar e aguardar.

Minutos antes da largada, começou a tocar o hino da prova e aí meu amigo, o sangue sobe e a adrenalina atinge o grau máximo. Era chegada a hora de fazer valer o ano, com todo o esforço atribuído na preparação.

A largada é uma loucura. As ruas são apertadas e a cidade para literalmente para assistir a passagem dos atletas. Enlouquecedor!

O primeiro pico de tensão foi quando minha garrafinha caiu! Verdade, ela caiu ainda na loucura da largada, mas consegui recuperá-la sem qualquer dano. Os primeiros 8 quilômetros são bem rolados e consegui ultrapassar muitas pessoas, tudo com objetivo de chegar na primeira subida bem e evitando o famoso funil. Acabou que a primeira subida em Les Houches era bem aberta e não afunilou (rs).

Em Les Contamines (km 31), a primeira surpresa da prova: meus pés estavam dando sinal de que algo não estava bem e me fez lembrar dos tempos áureos das corridas de aventura, aquelas de 4 a 5 dias ininterruptos…..ixxxiiii nada bom (rs).

Quando cheguei em Les Champieux (km 50), era o que imaginava: várias bolhas, em pontos específicos, com aquela característica de “sangue pisado”. Não acreditava naquilo…

Para vocês entenderem o porquê disso, foi culpa do tênis que comprei no dia anterior. Inacreditavelmente nunca tinha tido problema com aquela marca de tênis, mesmo usando-o no dia seguinte. Lembram da Lei de Murphy, pois é… E não adiantava chorar, tinha mais 28 km pela frente e muitas montanhas até chegar em Courmayeur (km 78) na Itália, para poder trocar de tênis, conforme o planejado.

Ah, sobre a primeira noite, honestamente adoro correr à noite. Isso foi um dos grandes legados da corrida de aventura. Normalmente cresço nas provas ao longo da noite. Se vale uma sugestão, busque sempre uma excelente lanterna, faz toda a diferença. (não tive problema algum com a minha)

Chegando em Courmayeur, com os pés detonados, encontrei o meu amor no apoio, comi, hidratei e fui cuidar dos pés. Troquei de meia e de tênis e não fiquei por mais de 13 minutos. Saí correndo do local, sem dores e na medida do possível, renovado, acreditem!!!!

Segunda parte do UTMB

Essa segunda parte da prova já conhecia, porque em 2017 tive o prazer de fazer o CCC, logo não tinha nada de novo pela frente. A não ser o SOL!. Pois é, o sol chegou sem clemência, devastando muitos competidores. E lógico que também sofri, mas fiquei super atento ao planejamento alimentar, suplementos, cápsulas de sal que minha super nutri (Juliana Soeiro), recomendou.!!! Neste aspecto foi foda (desculpe, mas precisava dizer).

O próximo ponto de apoio foi em Champex-Lac (km 123) na Suíça. Sabe aquela cidade dos sonhos entre os alpes para morar sem preocupações, só curtindo a vida nas montanhas? Tudo o que eu gostaria!

Bom, cheguei no ponto de apoio em Champex-Lac bem avariado, me sentindo fraco, fraco de comida. Foi quando consegui comer algo diferente, pois estava precisando fugir das barrinhas, géis, queijos, sopas, papinha de macarrões. O prato foi salsicha de vitela com pão + pasta de grão de bico e azeitonas. Foi tudo bem bom, mas não recuperei a energia que precisava. Neste momento observei que muitos atletas estavam parando por causa do sol, da falta de uma boa comida, do sono e eventuais lesões. Era o momento de administrar a prova, PC a PC.

Segui firme para Trient (km 140) com a cabeça muito boa e o corpo cansado, mas firme na minha meta (essa história conto ao final). Chegando no posto de controle e apoio, encontrei mais uma vez meu amor e lá foi o ápice. Consegui comer comida de verdade, batata, grão de bico, alcaparras e a famosa salsicha de vitela. Aí sim, minha energia voltou, tudo melhorou.

Disputa no final da prova

Agora rumo à cidade de Vallorcine (km 150), já na França, e mais um ponto de apoio, o último por sinal. Ao chegar, tomei um recovery (maravilhoso), dentro do planejado e parti (nem sequer me sentei). Neste momento da prova estava disputando com um francês, lado a lado. Ele era melhor nas descidas, mas eu sempre o buscava nas subidas. Ao perceber que parti, ele não titubeou e veio na cola. (rs).

Tínhamos uma subida indigesta até o Tête aux Vents, ponto culminante da última montanha, e o francês estava lá, talvez me cozinhando kkkkk.

Para “melhorar”, apareceu um espanhol, que fez a subida inteira atrás de mim, na sombra da lanterna e não me passava. Ao chegar no topo da montanha, um staff gritou para um atleta “o La Flégère está a 3.5 km”.

Eu não acreditava, era muita coisa, e à noite tudo parece distante. Iniciamos uma pequena descida rumo ao próximo ponto de controle e foi quando o francês e o espanhol me passaram. Fiquei incrédulo.

Ao chegar no La Flégère, nem parei. Passei direto e pude observar que o francês e o espanhol estavam lá. Pensei, putz…, agora é uma descida insana de 8 quilômetros até a chegada em Chamonix e comecei a repetir incansavelmente meu mantra: “A fé na vitória deve ser inabalável.”

O espanhol foi o primeiro a passar, sem ligar a seta (rsrsrs) e foiiiii. O francês não apareceu, não sei o que pode ter havido. Minha briga naquele momento era com o espanhol e foi quando gritei, em português mesmo, “quero ver aguentar esse ritmo até a chegada. Se conseguir parabéns, chegará na minha frente, caso contrário não me subestime. (com certeza ele não entendeu nada, muitos risos)”

Lembram quando mencionei em ter uma boa lanterna? Pois é, coloquei a minha no módulo power, porque precisava de toda luz possível para minimizar eventuais erros naquela descida insana, recheada de pequenas pedras e muitas raízes. ]

Em 1,5 quilômetros de descida busquei o espanhol e a partir daí a autoconfiança tomou conta. Fiz uma descida consistente e forte rumo à chegada e ao longo da trilha La Floria ultrapassei exatamente 11 (onze) atletas! Foi absolutamente emocionante!

Consegui cruzar a linha de chegada ao lado da minha esposa Claudia e de alguns amigos (Mauricio Rocha e Liliane) após 33h48m de prova. Não alcancei minha meta de 30hs, perfeitamente factível, mas tudo bem. Ano que vem estarei novamente em busca de novas metas e realizando novos sonhos.

“Que nossos sonhos sejam maiores que nossos medos.”

Os aprendizados são ímpares. Desde o tênis, a meia, a lanterna, a mochila, chegando até alimentação / hidratação.

Não poderia deixar de citar o apoio, essencial para uma boa performance. Use e abuse do seu apoio, ele está ali para isso. Planeje com calma, estude a prova, o percurso e a altimetria e não subestime a comida, ela é o seu combustível.

Não poderia deixar de frisar a importância e agradecer imensamente as pessoas envolvidas nesse projeto, desde a família; os amigos; ao Bernardo Tillmann; a nutri Juliana Soeir; as equipes CamelBak Outdoor Sports (todos) e Tribus Adventure (todos); a Clínica Malama; e a CamelBak Brasil.

A palavra que encontrei para expressar todo esse texto é Realização! Que venha 2020….