Relato de Daniel Meyer: La Misión Brasil 2019 80km
Relato publicado originalmente no perfil do Instagram. Siga o atleta em https://www.instagram.com/danimeyervidalivre/
Sétimo colocado geral com 13h40′ de prova. Não, não foi um bom resultado.Também não acho que chegar é vencer e nem quero acreditar nisso. Vencer é alcançar aquilo que se almeja, e eu não alcancei. Aceitar a derrota, sem desculpas e subterfúgios, me parece a única forma de sair-se vitorioso quando se perde.
O que eu queria mesmo era um resultado sub 13 horas na La Misión Brasil, essa grandiosa prova, que no momento é disparada a minha preferida entre todas as outras. Isso mesmo, abaixo de 13 horas, e sabia muito bem como o faria.
Larguei tranquilo, praticamente atrás de todos os corredores que eu considerava favoritos a Top 10, com exceção do @bgbauer, sempre muito consistente e inteligente.
Meu objetivo era terminar o primeiro loop de 22km até a Toca do Lobo – antes de entrar na Serra Fina – absolutamente inteiro e bem hidratado, e foi exatamente o que fiz.
Ainda no primeiro loop passei vários atletas, mas o primeiro dos aspirantes a Top 10 que me recordo ter ultrapassado foi o Marconi, depois o @marcusescrivani e mais adiante meu grande amigo @cellariusrunner – com quem tenho um laço de sofrimento e transcendência (Ultra do Bem 315km 2017) provavelmente impossível de ser desatado.
Finalizei com certa facilidade a primeira parte da prova e iniciei os 20km da Serra Fina na sétima colocação, 20 minutos atrás do primeiro colocado. Essa segunda parte da prova é o suprassumo, simplesmente a quintessência para corredores mais técnicos como eu – montanha pura, em estado bruto!
Continuei seguindo com o pé no freio, cuidando ao máximo para não forçar antes da hora. Logo no início, passei o Iazaldir. Subindo um pouco mais passei pelo @wellington.r.noronha , sentado, falando que pararia por ali. Bem mais adiante, ou melhor, bem mais acima, passei pelo @cpicinin, e em seguida pelo @jiusouza . Estava então na terceira colocação e sem forçar!
Continuei subindo com cautela, sem me esforçar para distanciar do Jiu, nem para alcançar o Weliton Carius, que já estava no visual…
Alcancei o cume da Pedra da Mina em terceiro, me sentindo o Kilian! Em euforia por dentro, mas conseguindo manter o plano, preservar as pernas, descer bem mais lento do que costumo descer em trilhas tão técnicas.
Mesmo assim alcancei e ultrapassei o Carius. Quando a descida se tornou menos técnica ele voltou a me ultrapassar, e pela primeira vez em toda a prova, senti estar forçando um pouquinho para acompanhá-lo. Mas ele logo voltou a diminuir bastante o ritmo, a ponto de eu pedir passagem e retomar a segunda colocação.
Seguíamos juntos, a nossa frente somente o Chico. E aqui, apesar de ainda estar sentindo tudo sob controle, não havia nenhuma ilusão, a minha parte da prova estava no fim e a dos meus adversários estava por vir – 20km de estrada de chão com relativamente pouco desnível.
Todos eles provavelmente seriam mais rápidos que eu nesse trecho, já contava com isso. Além do que, o Carius parecia estar nitidamente administrando a prova. Sendo assim, sabia que galgar mais do que já havia galgado seria muito difícil. No entanto a terceira colocação me parecia tão certa, tão palpável, tão doce… que cheguei a saboreá-la enquanto corria.
Eu e Carius finalizamos a Serra Fina juntos, e como já era esperado, ao chegar na estrada ele se mandou. Foi quando olhei para minha bermuda, carregada, dura de tanto sal! Ai, ai, ai, isso não era boa coisa. Sinal evidente de desidratação severa! Mas como, se o clima estava fresco, até mesmo gelado boa parte do dia? Como, se eu cuidei muito da hidratação e da reposição de sódio? Como, como, como? Não sei. Só sei que o quer que eu tenha feito, não fiz como deveria, algo deu muito errado e eu pagaria caro por isso.
Quando cheguei no PC Paiolinho (km 44) o Carius ainda estava lá e eu não sentia nenhum sinal da desidratação absurda que aparentemente havia sofrido. Apenas me ocupei de beber dois bons copos de guaraná, muita água e segui em frente, o Carius demorou um pouco mais no PC. Antes de sair perguntei ao Staff quanto tempo o Chico estava na frente, “15 minutos”, ele informou.
Nessa altura da prova já me sentia um pouco cansado, mas nada preocupante, na verdade tudo bem dentro da normalidade. Tanto que não tive nenhuma necessidade de descansar mais tempo no PC.
Seguia na segunda colocação, à espera da ultrapassagem do Carius por mim, que viria sem dúvida, cedo ou tarde. Veio cedo! Quando passou por mim devíamos estar por volta do km 50. Ao passar, determinado, disse, “vamos buscar o Chico!”. Pensei, “nesse ritmo tu vai mesmo! Mas não eu…”.
A partir daí as coisas subitamente, sem aviso prévio, começaram a sair do meu controle. Enjoo, fortes dores pra urinar sem conseguir. Não conseguia mais comer nem beber nada, até tentei, mas as coisas só pioravam.
Ainda consegui sobreviver trotando até o km 57 mais ou menos, até chegar de fato a um colapso fisiológico. Literalmente colapsei! E foi sem volta.
Daí em diante foi um terror! Só conseguia caminhar, vomitei até as tripas várias vezes. Tentava urinar mas somente algumas míseras e lancinantes gotas molhavam o pó da estrada. Caminhava, deitava, caminhava, sentava, respirava fundo e continuava. Perdi a terceira colocação para o Jiu por volta do km 60. E a quarta para o Picinin no km 62 mais ou menos.
Meu castelo estava desmoronando, tudo que eu havia almejado e parecia tão seguro de alcançar, escorrendo pelo ralo.
No início da subida do Campo do Muro, última grande ascensão da prova, o Noronha, ressuscitado, passa por mim, me deixando de fora do pódio geral – desastre total. Até tentei dar uma de louco e acompanhá-lo. Que vergonha! Minha loucura não durou dois minutos e ele se foi, sumindo rapidamente na escuridão. Me deixando só, na dura realidade de minha sexta colocação e meu castelo em ruínas.
Segui como pude morro acima, com passos de astronauta intercalados de pequenas pausas para vomitar, deitar, tentar mijar (dolorosamente sem sucesso), não necessariamente nessa ordem.
O diabo é que eu nunca paro de competir! Mesmo com o objetivo principal despedaçado, eu sempre dou um jeito de arranjar uma nova luta, um novo motivo para continuar lutando (apenas uma vez em 15 anos de ultramaratonas eu desisti de uma prova. Apenas uma vez na vida eu não consegui encontrar sentido para continuar lutando… E exatamente por isso é que andei sumido das competições. Eu precisava, de alguma forma, voltar a encontrar sentido naquilo que sempre amei).
Sub 13 horas, já era. Pódio geral, já era. A sexta colocação era o que eu tinha. Manter a sexta posição era agora – a minha luta! – e lutaria até o fim por ela.
Eu imaginava que o próximo a me passar deveria ser o Maicon, e foi! Nesse momento foi uma magnífica batalha de tartarugas! Como ele já mencionou em seu relato, ao me passar eu estava parado, quando voltei a ultrapassá-lo, ele estava parado. E seguimos assim, um atrás do outro, como dois astronautas bêbedos, até o cume do Campo do Muro.
Deste ponto em diante teríamos praticamente só descida até a chegada no centro de Passa Quatro.
Apesar de tudo, ainda me restava um fiapo de dignidade, eu não queria de jeito nenhum perder mais uma posição, ainda mais para o meu grande amigo. Consegui descer mais rápido que ele, mas em seguida as fortes dores para urinar me obrigaram a parar várias vezes, perdendo preciosos minutos.
Faltando apenas 3km o Maicon me passou, não esbocei qualquer reação, havia perdido mais uma luta. Agora precisava sustentar a sétima, porquê?
Porque sempre a algo pelo que lutar, sempre há um sentido escondido em algum lugar. Comigo foi sempre assim, e é assim que eu quero que continue sendo.
Segui competindo, dando o máximo (que nessas alturas era quase nada, confesso!), lutando agora pela sétima colocação, quando faltando apenas 2km de descida, eu simplesmente desmonto no chão, desesperado!
Achando que não conseguiria levantar dali e completar a bendita prova. Apenas 2km para a chegada e eu não conseguia me manter de pé… tudo indicava que neste dia eu perderia todas as batalhas que me propusesse a lutar. Mas não, levantei e continuei, ainda estava em sétimo. Fui escorregando os últimos kms até a cidade, no limite do limite de minhas forças. Cruzei o pórtico de chegada e desabei em prantos nos braços da Lili (minha namorada).
E ao parar de correr as dores e o enjoo se amplificaram. Precisei de várias horas até parar de me contorcer, me recompor e enfim, fazer xixi!
Não, não foi um bom resultado. Mas como eu gosto de tudo isso mesmo assim! Como eu amo tudo isso mesmo assim! Como vale a pena! Botei pra cima dos melhores e perdi, perdi feio. Mas pela primeira vez na vida eu tive a certeza de que dá pra ganhar desses caras! Dá pra ganhar a La Misión com tempo de recorde!
Tenho 1 ano para construir essa vitória. Podem me cobrar!
Retornarei a La Misión Serra Fina quantas vezes forem necessárias, até realizar algo de que eu possa me orgulhar.
E se não for possível? Então meus amigos, ao menos eu terei tentado.
Não, não posso aceitar que “chegar é vencer”, ao menos não antes de todas as batalhas terem sido perdidas. Somente quando chegar for a última luta que restou, então sim, chegar terá sido vencer. Mas não antes, não antes.
Engraçado como pra mim foi sempre – mais sobre corridas que sobre montanhas. E não é pouco o meu amor pelas montanhas, mas é ainda maior o meu amor pelos desafios que elas me proporcionam.
Houve um tempo em que cheguei achar que isso fosse um grande pecado. Até entender que não, era apenas o que eu sou, sem mérito, nem culpa.
Hoje, mais do que nunca, aceito o guerreiro que sou, aceito que sempre precisarei de uma boa luta para sentir-me merecedor da vida que tenho.
Porque estar na montanha, ahhh! é bom demais! Mas travar uma batalha na montanha – é como tocar o céu!
Vida longa a La Misión Brasil! Quem precisa de Mont Blanc quando se tem Serra Fina!
Parabéns a todo o STAFF da La Misión pela excelência na organização. Que prova magnífica senhoras e senhores, que prova!
Nos vemos em 2020!